Dioclécio Campos Júnior
Correio Braziliense - 13/11/2010
Médico, professor titular da UnB
Questionar dogma econômico nem sempre é fácil. Gera muita reação. Desperta resistência. Atinge âmagos dominados por verdade única e absoluta, tão incontestável quanto insubsistente. Expõe condicionamentos comportamentais assimilados pelas massas, impostos com sutileza em nome de interesses pecuniários canonizados pelo onisciente cardinalato da globalização.
A economia fundada no consumo induzido é a versão contemporânea do escravismo. Ganhou solidez porque escraviza insidiosamente povos inteiros, não mais os que eram trazidos nos porões dos navios negreiros. Mudou as casas grandes, transformou as senzalas. Os senhores de engenho são outros, mas a lógica é a mesma. Fazer fortuna em cima do trabalho forçado é estratégia que atravessou os tempos, intocada. Somente o método foi aprimorado. Não recorre mais à tortura física para constranger o trabalhador a produzir. Tal prática tornou-se desnecessária. Foi substituída por formas eficazes de persuasão psicológica que trocam o açoite pelo fascínio consumista, violência que poupa o corpo do cidadão para embevecer-lhe a alma e torná-lo refém da nova senzala onde vive, mas não vê. A sociedade de consumo difundiu-se pelo planeta. Contagia multidões com a força de uma pandemia psíquica geradora de dependência material insaciável. Não há limite, vale tudo. O que importa é apenas o lucro financeiro de quem domina os meios de produção.
A ideia que dá suporte à onda econômica escravista da atualidade é a expansão do crédito fácil. Aliada à tecnologia sedutora do marketing, endivida impiedosamente as classes sociais mais sofridas. Os prazos para o pagamento ampliam-se. Cobrem parte expressiva da vida dos devedores. Comprometem-lhes a existência. Os juros esganam o cidadão, máxime o pobre. Para cumprir o compromisso assumido com a compra ilusoriamente vantajosa de bens, só lhe resta trabalhar o tempo todo na esperança de se libertar de ônus crescente em custo e interminável em duração. Os bens adquiridos envelhecem, depreciam. O cidadão ganha idade. Enquanto isso, a dívida rejuvenesce e se eterniza. O endividado nunca poderá parar de trabalhar se não quiser perder o que comprou.
Para manter a autoestima dos novos escravos, os governos não se cansam de mistificar. Falam de inclusão social e distribuição de renda, conceitos que não se aplicam à sociedade de consumo. São dogmas. O sociólogo francês Jean Baudrillard demonstra que nessa modalidade de economia não há distribuição de renda. Dá-se, na verdade, o transbordamento da riqueza das classes mais altas que se espalha pelas mais baixas por mecanismos econômicos possíveis. Não passa de mero gotejamento da sobra dos ricos que propicia o consumismo dos menos favorecidos. A concentração da riqueza não muda. Os banqueiros lucram como jamais. A sociedade segue escravista, desigual e injusta. Com o crédito dito democratizado, o pouco dinheiro que remunera o trabalhador retorna integralmente aos cofres bancários, acrescido dos juros, em troca de produtos que lhe deveriam ser garantidos a preços abordáveis se empresários não se apropriassem inclusive da mais valia de seu trabalho.
Dizem os economistas que todo empreendimento é bom porque gera emprego. A linguagem verdadeira é outra. O emprego só é criado para ampliar a população de consumidores. A poupança não é bem-vista. É a antítese do consumismo. Os salários já não pertencem aos trabalhadores. Estão vinculados ao pagamento de tudo que são levados a consumir. Não por vontade própria, mas por necessidade que lhes é ardilosamente provocada.
Por meio de redução tática dos impostos, nunca se incitou tanto a venda de automóvel no Brasil. Afirmam os videntes da economia que a indústria automobilística salvou o país da crise econômica. O correto é reconhecer que o povo brasileiro salvou a indústria automobilística da catástrofe. O resultado pode ser visto no inchaço caótico do espaço urbano, decorrente de enorme inconsequência responsável pelo pesado endividamento dos novos motoristas.
A moderna escravidão do trabalhador está oculta nas tramas consumistas que o enganam. Só serão desfeitas quando o Estado assegurar educação, saúde e transporte coletivo de qualidade, gratuitos, livremente acessíveis a todos os cidadãos. Quando prover moradia digna às famílias dos despossuídos. Não uma pequenina casa popular a ser paga durante toda a vida do morador. Nem o carro, por anos a fio. Se a nova escravidão não for abolida, o trabalhador morrerá endividado. Será vítima do programa minha dívida, minha vida.
Um comentário:
Caro Nery
Desconhecia teu blog, parabéns!
Gostei do artigo do Dioclécio, do Sciar e .. da paella!
Sobre Scliar, cabe uma manifestação da SPRS, se quiserem posso tentar escrever.
Abraço,
Ilson
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