domingo, 6 de janeiro de 2008

A coruja de Minerva

Por Marcos Rolim

Há uma famosa passagem de Hegel (1770-1831), na Introdução à Filosofia do Direito, na qual ele afirma que "A coruja de Minerva só inicia seu vôo ao entardecer". Com isso, sustentava que a filosofia só poderia afirmar algo sobre o mundo após a necessidade ter se mostrado. A razão, afinal, descobre o sentido da história, mas não antes dela mesma. Nas palavras do filósofo:

"Quando a filosofia chega, com sua luz crepuscular, a um mundo que declina, é porque alguma manifestação de vida está prestes a desaparecer. Não vem a filosofia para renová-la, mas apenas para reconhecê-la".

A passagem oferece muito "pano para manga". Lembrei dela, entretanto, quando soube que a explosão de fogos de artifício marcada para saudar a entrada de ano em Capão da Canoa havia sido suspensa por determinação de um grupo de PMs empenhados em proteger corujas. Penso que, neste fato, algo do mundo que herdamos começou felizmente a desaparecer e que compete ao pensamento reconhecê-lo. Se alçar vôo é condição para ver mais amplamente; para perceber, além dos fatos isolados, o contexto ou o movimento geral que pode lhes oferecer sentido, então devemos reconhecer, primeiro, que na atitude daqueles policiais houve uma coragem incomum. No outro lado, afinal, havia milhares de pessoas. Muitas delas já tendo "aberto os trabalhos" com o champanha há algum tempo. Pelo que soube, eram apenas 14 os brigadianos e, contra eles, houve quem, irresponsavelmente, incitasse a massa em nome da festa. Para não enfrentar tamanha tensão, os PMs poderiam ter se omitido.

Dificilmente seriam criticados. E se, pela manhã, as corujas estivessem mortas, quem poderia culpá-los? Afinal, em meio à confusão, atenderam vítimas de acidentes no trânsito, carregaram pessoas com os pés cortados pelos cacos das garrafas atiradas à praia, entre tantas outras tarefas... e eram apenas 14, os brigadianos. No que fizeram, nada, absolutamente nada, podia lhes oferecer conforto, além do compromisso de agir "em conformidade com o dever", como se kantianos fossem.

Há quase 20 anos, na Suécia, fiquei intrigado, porque um lago congelado por sobre o qual passava uma auto-estrada possuía um pequeno espelho de água exposta. Descobri, então, que funcionários da prefeitura perfuravam o gelo, todas as manhãs, para que pássaros migrantes encontrassem ali a água que necessitavam. Comecei, naquele momento, a perceber mais seriamente qual o significado da palavra "civilização". Então, só queria dizer que, da forma como vejo as coisas, a civilização esteve representada em Capão da Canoa por aqueles policiais militares.

Enquanto isso, em Flores da Cunha, bandidos fardados divertiram-se torturando. As notícias dão conta de que a covardia envolveu o emprego de cabos de vassoura introduzidos no ânus de uma das vítimas e, é claro, sessões de asfixia com sacos plásticos. Prestar homenagens aos policiais de Capão e mandar para a cadeia a "turma do saco plástico" são exigências fundamentais para a cidadania. Coisa para a qual, espera-se, não seja preciso esperar a coruja de Minerva alçar seu vôo.

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